Nasci em 1942, num lugarejo do concelho de Oliveira do Hospital. Cedo vim para Lisboa, fiquei interno no elitista Manuel Bernardes, onde tinha como companheiros descendentes da família do Conde da Covilhã ou dos banqueiros Espírito Santo, embora, ali, eu não passasse do matarruano bobo da festa.
Na alternância, que julgo compensar caras propinas, trabalhei na estância do meu pai. Equilibrado o deve e o haver, voltei novamente aos internatos, aqueles que ficavam lá mais ao norte, e funcionavam como rígidas colónias penais.
Em 1964, na EPI de Mafra, iniciei uma longa recruta. Depois de passar por Tavira e pelo Funchal, rumei ao CIOE de Lamego, para frequentar o curso de Rangers. Sem o desejar, fui mobilizado para a Guiné onde, intensamente, vivi a guerra e chafurdei nas putrefatas Bolanhas.
No regresso, tentando esquecer os traumas, segui a atividade de vendedor – fui-o da Nestlé, mas também vendendo colheres com termómetros para bebés, máquinas de café, metais não ferrosos, seguros e enciclopédias.
Voltei novamente para África, para as diamantíferas terras de Luanda. Estando o meu amor separado pelo antigo mapa cor-de-rosa, casei por procuração. Aquelas brilhantes pedras do Luarica ou do Canzo, não eram só produto de divinos, profundos laboratórios. Em livre experimentação, fabricámos, no útero da minha mulher, a mais bela gema do Lunda: um filho amado.
De volta ao Torrão, preparei uma nova viagem para África, mas agora para a oriental costa e com mais uma outra, chilreante cria. Trabalhei numa divisão de Engenharia, com várias vertentes, fiz medições de caudal nos longos rios de Moçambique e a minha dedicação ao trabalho, levou-me para a rápida construção de postos médicos, para a captação de água, necessária aos populosos, estratégicos aldeamentos, que tinham a finalidade de secar a água ao peixe da guerrilha.
Depois da revolução de Abril, é-me dado um privilegiado trabalho, inicialmente chamado de Arca de Noé. O fecho de Cahora-Bassa, o enchimento de uma das maiores Albufeiras do mundo, ia gerar complicados problemas. Populações que viviam a 40 km do leito jamais iam admitir que a água lhes ia chegar aos pés. Montei um acampamento na floresta, que fazia a delícia dos visitantes, tínhamos barcos para procura e proteção, helicópteros em constante vigilância. Em levas, chegavam os visitantes estudiosos, com os funcionários do Snake Park da Rodésia. Andei dias a apanhar cobras, à noite, na Machaze revestida de colmo ouvia os franceses a discutir o problema da salvinha (ou praga dos Jacintos), ou os holandeses a falarem sobre o repovoamento piscícola.
Regresso em pleno PREC e atiraram-me para um obscuro recanto dum gabinete do Ministério da Agricultura. Um homem de constante ação, confinado à escuridão de um recanto, é um duro suplício.
Abandono a segurança de uma carreira no funcionalismo público e passo a vender materiais de construção, num país carenciado de habitação, tão necessária para as constantes levas que vinham de além-mar. Despejo tijolos em montes e vales, junto às Praças, por trás das grandes Avenidas, no areal das praias, na recatada orla das Albufeiras.
Hoje, cansado, reformado, mas ainda no ativo, e imbuído de espírito Sherazade, continuo a contar tanta história, do meu vivido passado.